Após assumir com uma agenda de medidas prioritárias, a gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no Ministério da Saúde chega à marca de cem dias com parte das ações em andamento, como a retomada do programa Mais Médicos, ao mesmo tempo em que corre para retirar outras do papel, como a ampliação do Farmácia Popular.
 

A pasta é comandada por Nísia Trindade, ex-presidente da Fiocruz e primeira mulher a assumir no cargo. Logo nos primeiros dias, ela anunciou mudanças na organização da pasta, como a criação de uma secretaria de saúde digital e de um departamento de imunizações e a retomada de estrutura semelhante na área de HIV/Aids.
 

Também passou a adotar medidas que representam contraponto direto à gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), como a revogação de portarias na área de saúde das mulheres que traziam travas ao aborto legal e de uma nota informativa que sugeria o uso de cloroquina no tratamento da Covid.
 

Os primeiros dias ainda foram marcados pela declaração de emergência devido a mortes por desnutrição entre yanomamis e envio da Força Nacional do SUS a Roraima, pelo anúncio de recursos para reduzir a fila de cirurgias eletivas e pelo lançamento de nova versão do Mais Médicos, programa que visa a levar médicos ao interior e que vinha sendo deixado em segundo plano.
 

Dentro da pasta, as ações são definidas como de “reconstrução” diante do que a equipe de transição chamou de “caos” e “terra arrasada”. O motivo era a falta de coordenação com estados e municípios, ausência de informações sobre estoques de testes e vacinas e maior queda na cobertura vacinal nos últimos anos, entre outros problemas.
 

Nesta mesma época, a transição elencou dez medidas prioritárias como sugestão para os cem primeiros dias —reforçadas em grande parte pela ministra em discurso de posse e entrevistas.
 

Dessa lista, ao menos oito já tiveram algum anúncio inicial. A maioria, no entanto, ainda demanda maior detalhamento ou deve incluir novas ações. É o caso do fortalecimento do complexo industrial da saúde, cujo grupo executivo foi recriado nos últimos dias, e do próprio Mais Médicos, que aguarda os novos editais.
 

Especialistas e gestores ouvidos pela reportagem apontam avanços nos últimos três meses, mas reforçam a necessidade de atenção a outros desafios urgentes e de medidas que visem a enfrentar questões estruturais do SUS a médio e a longo prazo.
 

“Precisamos de uma agenda estratégica para que não fiquemos apenas atendendo às questões emergenciais”, afirma Cipriano Maia, secretário de saúde do Rio Grande do Norte e presidente do Conass (gestores estaduais).
 

Em geral, a avaliação é que o governo teve na nova versão do Mais Médicos um dos principais marcos do período. A ideia do programa, reembalado com novos incentivos financeiros para tentar fixar profissionais, é ofertar 15 mil novas vagas neste ano, chegando a cerca de 28 mil.
 

O anúncio, porém, trouxe um novo capítulo de embate com entidades médicas pela possibilidade de ingresso de profissionais sem revalidação do diploma. Agora, a previsão é que a discussão siga para o Congresso na análise da medida provisória que trouxe as mudanças.
 

“Há necessidade de procurar uma solução efetiva e resolutiva para provimento de médicos. Queremos colaborar, mas não conseguimos aceitar que se levem médicos não formados no Brasil, mesmo brasileiros, sem que suas competências de fato tenham sido comprovadas”, diz César Fernandes, da AMB (Associação Médica Brasileira).
 

Para ele, há outros modelos a serem testados. “Um deles é ter equipes itinerantes para locais inóspitos”, aponta Fernandes, para quem a falta de estrutura pesa na dificuldade de fixação.
 

Rosana Onocko, da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), diz que a retomada do Mais Médicos “não é a panaceia, mas era necessária”.
 

Ela defende, contudo, que também haja discussão sobre uma carreira de estado na rede de saúde. “O Mais Médicos é importante, mas é um paliativo. A questão da carreira é estruturante para o próprio SUS.”
 

A necessidade de novas medidas também é apontada por especialistas em outras metas tidas como prioritárias, como a redução de filas de cirurgias eletivas. Em janeiro, a pasta anunciou R$ 600 milhões até junho para distribuir aos estados que enviarem planos para essa redução das filas.
 

Para Gonzalo Vecina Neto, professor de Saúde Pública da USP, embora estratégias como mutirões e atendimento noturno sirvam de forma emergencial, é preciso debater outras ações, como melhorar a regulação. “Enquanto não existir uma fila única, como a de transplantes, nunca vou saber o que estou deixando de fazer.”
 

Onocko concorda. “O dinheiro para mutirões é importante, mas não é a solução para o SUS”, diz. “Precisa de outra regulação a partir das regiões de saúde. A gente não consegue nem saber quantas pessoas têm na fila e para quê.”
 

Especialistas e gestores sugerem ainda atenção a outros temas, como a informatização da rede de saúde e novas estratégias para estimular a vacinação.
 

Em fevereiro, o governo lançou um Movimento Nacional de Vacinação e campanha com doses da vacina bivalente contra a Covid para grupos vulneráveis. Na ocasião, Lula foi vacinado pelo vice, Geraldo Alckmin, em gesto pró-imunização e novo contraponto a Bolsonaro.
 

Desde então, a Saúde também tem dito estudar ações extras para frear a queda nas coberturas, como o retorno de parcerias com escolas, mas nada ainda foi divulgado.
 

A lista de medidas prioritárias tem outras ações pendentes, como a retomada do Farmácia Popular, programa que visa a ampliar o acesso a medicamentos gratuitos ou com baixo custo.
 

Em reunião recente com secretários estaduais e municipais de saúde, a ministra Nísia Trindade disse avaliar que a pasta “conseguiu cumprir quase todas as ações previstas” para os cem dias e que se prepara para relançar o programa.
 

“Esperamos em breve anunciarmos a retomada”, afirmou, sem dar prazo.
 

Questionados, secretários estaduais e municipais dizem ver melhoria no diálogo com a Saúde nos últimos meses. “É uma mudança da água para o vinho. Antes tínhamos situações esdrúxulas e inaceitáveis”, diz Maia, do Conass.
 

O grupo, no entanto, tem apontado preocupação em reuniões com outras demandas urgentes, como o risco de falta de insulina a partir de maio. Também pede apoio diante do represamento de consultas especializadas na pandemia.
 

Adriano Massuda, coordenador da FGV Saúde e membro do grupo técnico da transição, diz que as ações até o momento indicam uma tentativa de “recuperar o que foi desconstruído”. “Daqui para a frente, vai precisar ter muito mais inovação para enfrentar os desafios.”
 

Ele defende aumentar o debate sobre problemas estruturais, como financiamento, e a construção de novas políticas para temas urgentes. “A crise sanitária é muito grave. Uma das questões principais é a mortalidade materna que aumentou muito nos últimos anos.”
 

Em nota, o Ministério da Saúde disse que a atual gestão “tem como prioridade a reconstrução de políticas públicas fundamentais para a saúde da população brasileira, como o programa Farmácia Popular, que estava sob ameaça de paralisação no governo passado”.
 

“A iniciativa, criada em 2004, será fortalecida e aperfeiçoada, assegurando o acesso a medicamentos gratuitos e com preço acessível”, declarou, sem detalhar medidas e prazos.
 

A pasta diz ainda que a atual gestão “está empenhada em resgatar na população a confiança nas vacinas” e que a retomada de parcerias com escolas é discutida com o Ministério da Educação.
 

Questionada sobre propostas como a regulação de filas de cirurgias, o ministério diz que pretende discutir o tema nos próximos meses, quando também planeja nova etapa para diminuir represamento de exames e consultas. Diz ainda aguardar o envio de planos de mais estados para liberação dos recursos previstos.