Todas as noites, quando já se prepara para tirar uma soneca gostosa, Luca, prestes a completar um aninho, observa um vulto de 1,78 metro de envergadura se curvar em seu berço. Seus olhos se esbugalham diante de uma mulher com o rosto todo pintado, os lábios delineados pelo rouge. Luca só se acalma ao reconhecer aquela voz de contralto, bem anasalada -é a sua mamãe, que chegou do trabalho.
 

Ela está de volta. Aos 57 anos, Claudia Raia vive Tarsila do Amaral em “Tarsila, a Brasileira”, peça que entra em cartaz na quinta-feira, dia 25, no Teatro Santander. Mesmo antes da estreia, o musical se tornou o assunto da cidade. É assim com tudo o que acontece na vida da atriz.
 

Sua terceira gestação, fruto do casamento com o ator Jarbas Homem de Mello, que na peça interpreta Oswald de Andrade, causou debates acalorados nas redes sociais.
 

Parte do movimento feminista achou que a atriz prestou um desserviço ao anunciar uma gravidez natural, estando ela na menopausa. Raia não está nem aí. “Tirei as mulheres do sofá da menopausa”, ela afirma. “Deus me concedeu esse milagre. Me surpreende as críticas das feministas. Serão pseudofeministas? Talvez. Perguntam assim ‘você vai amamentar?’ Óbvio que eu vou amamentar. Eu tiro leite.”
 

A atriz afirma querer viver até os 110 anos, mas diz que, depois dos 40, a mulher brasileira passa a ser esquecida pela sociedade, impossibilitada de fazer planos. Cantando, dançando e tendo de cuidar de outros dois filhos -Enzo, de 26 anos, e Sophia, de 21 anos, ambos do casamento com o ator Edson Celulari- a artista rejeita o padrão imposto pela sociedade. Até porque sua atuação artística se realiza bem além dos palcos.
 

Com o tempo, Raia se tornou também produtora, o que chama a atenção de uma parcela da sociedade. Afinal, ela precisa captar verba por meio das leis de incentivo, sobretudo da Lei Rouanet, tão criticada pelos apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, do PL. Há um ano, Raia se envolveu em outra polêmica, porque sua produtora captou R$ 5 milhões pela Rouanet.
 

Até Regina Duarte, ex-secretária de Cultura de Bolsonaro, participou da discussão, compartilhando uma postagem no Instagram que acusava Raia de ser comunista e satanista. “A importância da Lei Rouanet é total para o musical brasileiro. Me magoa o analfabetismo em relação a isso”, diz, enfatizando que não ganha dinheiro público, mas há uma isenção fiscal para os patrocinadores.
 

Desde que apoiou o ex-presidente Fernando Collor de Mello nas eleições de 1989, Raia não quis mais declarar simpatia por político algum, o que só aguça a curiosidade por sua preferência ideológica.
 

“Eu nunca fui PT, eu sou apartidária, sou uma humanista, é pelo social”, afirma. “Mas, se você me perguntar em quem eu votei entre Bolsonaro e Lula, eu votei no Lula, porque não tinha como, não tinha nem o que pensar.”
 

Com a autorização de captar mais de R$ 7 milhões, Raia acredita que um musical sobre a identidade do país pode ajudar a unir as pessoas. Foi Tarsilinha, sobrinha-neta da pintora, quem teve a ideia de montar “Tarsila, a Brasileira”.
 

Há quatro anos, ela ligou para Raia, pedindo que vivesse sua tia-avó em um musical. Passada uma pandemia e um puerpério, a megaprodução estreia com a pintora sozinha no palco, ao som da “Abertura”, da ópera “O Guarani”, de Carlos Gomes. A direção de José Possi Neto tematiza o romantismo para, em seguida, o dinamitar.
 

De súbito, passamos a 1922, o ano da Semana de Arte Moderna. Tarsila volta da Europa, onde estudava na Escola de Artes de Paris, e entra em contato com o chamado Grupo dos Cinco, formado por Anita Malfatti, Mário de Andrade, Menotti del Picchia e Oswald de Andrade, com quem teria um romance tórrido. Tarsila escandalizara a família, quando, dois anos antes, se divorciara do primo, André Teixeira Pinto.
 

“Oswald sempre foi ousado, sempre teve uma atitude irreverente. Ele gostava de ser diferente e até usava ternos rosa-choque com a intenção mesmo de chocar”, diz Jarbas Homem de Mello.
 

A direção musical de Guilherme Terra privilegia o som que surgia dos centros urbanos brasileiros, no início do século 20. As danças de salão da Europa se uniam aos ritmos, influenciados pela herança africana, resultando no que Heitor Villa-Lobos tão bem traduziria em seu projeto estético.
 

Do mesmo modo, Tarsila redescobriu a identidade brasileira, deglutindo os traços cubistas do espanhol Pablo Picasso e do francês Fernand Léger. A efervescência cultural da época se realiza na ideia da antropofagia, central ao movimento modernista, culminando numa cena de nu artístico, feita pela protagonista. Raia tira a camisola e se depara com sua imagem num espelho torto. Daí, ela tem a ideia de criar, em 1928, “Abaporu”, sua obra mais conhecida.
 

“É muito estranho essa tela não estar hoje no Brasil”, afirma a atriz. Há quase duas décadas, o brasileiro que deseja admirar “Abaporu” tem de ir até o Museu de Arte Latino-Americana, o Malba, em Buenos Aires, na Argentina.
 

Pouco a pouco, o cenário da montagem dependura as principais obras da pintora, dando um panorama dos três períodos de sua produção -a fase Pau-Brasil, de “A Feira” e “O Pescador”, a fase antropofágica, com “Urutu” e “Antropofagia”, e a fase social, de “Operários” e “Criança do Orfanato”. Espelhando sua obra em progresso, o musical tematiza a vida de Tarsila como uma epopeia.
 

No arco narrativo, os amores da pintora ganham um sentido dramatúrgico. A versão adotada pela direção da peça encena um trisal entre Tarsila, Oswald e Pagu. Em consequência, a traição de Oswald ocorre em termos modernos, bem apropriados para artistas modernistas. “O combinado era não se apaixonar e não engravidar”, lembra Raia. “Oswald fez tudo isso com Pagu e foi embora com ela.”
 

As dificuldades na vida de Tarsila só cresciam. Com o “crash” da Bolsa de Nova York, em 1929, sua família de fazendeiros entra numa crise financeira sem precedentes. A fortuna acumulada estava lastreada pela exportação de café. Indo do céu ao inferno, a personagem de Raia viaja até a União Soviética, fato determinante para a sua fase social.
 

Em 1932, chega a ser presa no governo de Getúlio Vargas, acusada de comunismo. No palco, os anos sombrios contrastam com a opulência de suas obras, avivada pela riqueza com que emprega as cores nas telas, para retratar a diversidade brasileira.
 

E ainda há tempo para mais um casamento na vida de Tarsila, agora com o jornalista carioca Luiz Martins, 20 anos mais jovem do que ela. Com a diferença de idade, a pintora nutriu a angústia de não poder dar um filho a Martins.
 

Em vão. Tarsila seria novamente traída, ficando sozinha. Entre a maternidade na maturidade e o olhar humanista, é tentador fazer comparações entre as vidas de Tarsila e de sua intérprete. Raia rejeita todas elas.
 

“Ela é muito diferente de mim. A única coisa que eu acho que a gente tem em comum é a força de realização”, afirma a atriz. Para o espetáculo, o casal de artistas se debruçou sobre a enxurrada de livros publicados em 2022, que ofereceu novas perspectivas críticas à Semana de Arte Moderna.
 

Na época, estudiosos ligados ao movimento identitário enquadraram como racista a tela “A Negra”, pintada pela artista em 1923. De acordo com o pensamento, Tarsila estaria tratando a mulher negra brasileira como um ser primitivo e exótico. “De maneira alguma é racista. Os movimentos cubista e futurista beberam muito da África”, afirma Homem de Mello. Raia nega o racismo por um outro caminho.
 

“Ela gostava mesmo, nas palavras dela, de ficar com as empregadas da casa, porque contavam as histórias de bichos e fantasmas.”
 

Ademais, a artista afirma que a produção se guiou pela ideia de antropofagia para conceber o musical. Assim, ela ecoa um velho debate sobre musicais no país -a maioria das produções copia e cola a linguagem da Broadway. “Saímos da cartilha Broadway, é um salto sem rede”, diz.
 

Sendo produtora e atriz, Raia acredita que há uma diversidade na realização de musicais no Brasil. Mas ainda há um preconceito histórico, vindo do teatro de prosa. Para muitos, as peças musicais se reduzem ao entretenimento. “Acho que há um excesso de besteirol e sem qualidade”, afirma Raia. “‘Tarsila, a Brasileira’ vem, sem pretensão alguma, dar um passo à frente no cenário musical do país.”
 

TARSILA, A BRASILEIRA
 

Quando Qui. a dom. às 20h. Estreia quinta (25). Até 18 de fevereiro
 

Onde Teatro Santander – Av. Pres. Juscelino Kubitschek, 2041, São Paulo
 

Preço De R$ 25 a R$ 300
 

Classificação 12 anos
 

Autoria Anna Toledo e José Possi Neto
 

Elenco Claudia Raia e Jarbas Homem de Mello
 

Direção José Possi Neto e Guilherme Terra