O Ministério da Fazenda estuda uma manobra para voltar a pagar em dia suas dívidas judiciais, os chamados precatórios, sem estourar os limites do novo arcabouço fiscal nem precisar mudar as metas para as contas públicas já sinalizadas pelo governo e que incluem zerar em 2024 o déficit primário (que desconsidera despesas com juros da dívida pública).

Segundo interlocutores ouvidos pela reportagem, a equipe econômica discute incluir em uma PEC (proposta de emenda à Constituição) a possibilidade de classificar parte dos precatórios como uma despesa financeira. Isso deixaria o gasto fora do alcance do arcabouço e da meta de resultado primário, embora continue afetando o quadro fiscal ao impulsionar o endividamento do país.

As despesas financeiras incluem hoje o pagamento de juros a investidores e o resgate de títulos da dívida pública.

São diferentes das despesas primárias, que ajudam a promover os serviços públicos e incluem gastos com pessoal, benefícios sociais, custeio da máquina e boa parte dos investimentos.

Como os precatórios são passivos que envolvem folha de pagamento, benefícios previdenciários ou ações de custeio, eles também são considerados despesa primária. A única diferença é que foram reivindicados pela via judicial.

O ministro Fernando Haddad (Fazenda) quer regularizar essas dívidas, represadas após uma emenda constitucional aprovada no governo Jair Bolsonaro (PL) limitar seu pagamento com o objetivo de abrir espaço no Orçamento de 2022 para turbinar gastos em ano eleitoral. A medida foi apelidada por críticos de “PEC do Calote”.

Sob as regras atuais, porém, a retomada do fluxo regular de precatórios piora o resultado primário e reduz o espaço disponível para gastos no novo arcabouço –consequências que a Fazenda quer evitar em um momento em que diferentes agências de classificação de risco melhoram a avaliação do Brasil com base no compromisso fiscal do governo.

Para driblar o problema, a ideia é dar tratamento contábil diferenciado aos precatórios pagos acima do limite vigente. O dispositivo seria incluído na PEC que vai mexer nos mínimos constitucionais de Saúde e Educação. Se o plano for adiante, esse montante das dívidas judiciais passaria a ser carimbado como despesa financeira.

Dessa forma, o governo poderia quitar o valor integral de dívidas judiciais, reportado pelos tribunais a cada ano, sem precisar mudar a meta fiscal, gesto que poderia ser mal recebido pelo mercado e pelas agências internacionais.

A proposta vem sendo discutida sob reserva entre Haddad e seus auxiliares e ainda está em construção –por isso, pode sofrer alterações. Procurado pela reportagem desde a manhã de terça-feira (8), o Ministério da Fazenda não se manifestou.

Críticos apontam nos bastidores que a manobra pode ser vista como uma reedição da contabilidade criativa adotada em gestões passadas do PT, que contribuiu para corroer a credibilidade da política fiscal. A medida permitiria ao governo maquiar gastos para entregar a qualquer custo a meta prometida.

Na segunda-feira (7), o governo propôs uma mudança no PLDO (projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias) de 2024 que também foi interpretada como uma manobra de risco.

O Executivo encaminhou uma mensagem pedindo o aval do Congresso para excluir da meta fiscal R$ 5 bilhões em despesas de estatais federais no âmbito do Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). A ideia acendeu o alerta entre especialistas porque a meta das estatais pode ser usada para compensar eventual frustração no esforço fiscal a ser perseguido pelo governo.

A discussão sobre os precatórios pode resultar em um drible ainda maior. A regra que restringe o pagamento das dívidas judiciais vale até o fim de 2026, e o fluxo anual tem sido constantemente maior do que o limite disponível, levando ao acúmulo desse passivo.

Um ofício do Ministério do Planejamento e Orçamento obtido pela reportagem estima que o estoque de precatórios não pagos em anos anteriores alcançará R$ 68,4 bilhões em 2024 com atualização monetária. Já o fluxo de novas dívidas judiciais seria de R$ 49,7 bilhões no ano que vem, ante um espaço de R$ 17,9 bilhões. Pela regra atual, a diferença de R$ 31,8 bilhões será incorporada ao saldo devido pelo governo.

O impasse dos precatórios tem preocupado a equipe econômica em meio a alertas de diferentes órgãos do Executivo.

O Tesouro avisou que, sem mudanças, o passivo acumulado pode alcançar até R$ 200 bilhões, a serem quitados integralmente em 2027. O órgão adotou como premissa a exclusão dessa despesa da limitação de despesas do arcabouço fiscal, mas isso não resolveria o resultado primário. Mesmo em um cenário de alta na arrecadação, o desembolso levaria o governo a registrar um déficit de 1,1% do PIB (Produto Interno Bruto) no ano de regularização.

Já o Ministério do Planejamento informou que todas as pastas podem ter suas despesas discricionárias (que incluem custeio e investimentos) zeradas em 2027 se não houver uma solução antes disso. A falta de verba não pouparia nem sequer a área da Saúde.

Além do risco envolvido na mudança da classificação contábil dos precatórios, o formato da proposta em discussão também chama a atenção. É bastante incomum incluir na Constituição, norma máxima do país, regras de contabilidade pública, geralmente tratadas em legislação ordinária ou manuais técnicos.

Propor a alteração por PEC indica mais uma tentativa de amarrar o entendimento do Banco Central –órgão responsável pelas estatísticas oficiais das finanças públicas brasileiras. É o BC que calcula o resultado primário para fins de verificação do cumprimento da meta fiscal.

O governo já tentou iniciativa semelhante no resgate de R$ 26 bilhões abandonados por beneficiários no Fundo PIS/Pasep, mas o tema acabou abrindo uma divergência com o BC.

A Emenda à Constituição 126, aprovada na transição de governo, diz que os recursos devem ser “apropriados pelo Tesouro Nacional como receita primária”.

Com base nesse artigo, o Ministério do Planejamento incluiu a verba como receita primária no Orçamento de 2023, o que ajudou a reduzir o déficit –que, ainda assim, está estimado em R$ 145,4 bilhões, longe da promessa de cerca de R$ 100 bilhões feita por Haddad no início deste ano.

O BC, por sua vez, entende que o saque das contas do Fundo PIS/Pasep não representa “esforço fiscal” e, por isso, não serve para reduzir o rombo das contas em 2023.

Como mostrou a Folha de S.Paulo, a instituição considera que a transação “aumenta os ativos financeiros da União, mas não impacta o resultado primário, sendo considerada, do ponto de vista dos fluxos, como um ajuste patrimonial”. Na prática, o déficit é R$ 26 bilhões maior aos olhos do BC.

As classificações feitas pelo Banco Central obedecem a padrões internacionais. Isso evita a aprovação de metodologias distintas nos diversos países, ao sabor de preferências políticas, o que colocaria em risco análises e comparações.

Ainda assim, uma ala do governo entende que o trecho da emenda constitucional sobre o Fundo PIS/Pasep também condiciona o entendimento do BC. Por isso, a nova PEC em discussão é vista como mais uma tentativa de vincular a interpretação da instituição.

ENTENDA O IMPASSE DOS PRECATÓRIOS

O que fez a PEC dos Precatórios?

A proposta criou um limite anual para o pagamento de dívidas judiciais. A exemplo do mecanismo do teto de gastos, o texto toma como base o valor repassado a essas sentenças em 2016 e prevê sua atualização pela inflação do período. O montante excedente é adiado para pagamento nos anos seguintes, conforme uma espécie de fila de dívidas –que cresce à medida que novos valores surgem a cada ano

Quando ela foi aprovada?

Em 2021, ainda no governo Jair Bolsonaro (PL)

O que motivou a proposta?

O governo Bolsonaro precisava enviar a proposta de Orçamento de 2022 e queria ampliar os gastos sociais em ano eleitoral, mas um “meteoro” de R$ 89 bilhões em dívidas judiciais, como chamou o então ministro Paulo Guedes, ocupou o espaço que estava disponível. A criação do limite buscava liberar verbas para atender aos desejos de Bolsonaro

A regra vale por quanto tempo?

O primeiro ano de vigência foi 2022, quando o governo adiou R$ 21,9 bilhões em dívidas judiciais. A emenda constitucional diz que o limite vale até o fim de 2026

O que acontece em 2027, quando termina o prazo?

O Tesouro alerta para o risco de uma bomba de R$ 200 bilhões em precatórios acumulados a serem pagos pela União em 2027. Para fazer frente a essa despesa, o órgão adotou como premissa em seus cenários fiscais a exclusão do gasto dos limites do novo arcabouço fiscal

O que o governo estuda agora?

O Ministério da Fazenda discute uma mudança na Constituição para classificar parte dos precatórios como despesas financeiras (categoria ligada ao serviço da dívida pública), o que deixaria o gasto fora do alcance do arcabouço e da meta de resultado primário (que desconsidera despesas com juros da dívida), embora continue afetando o quadro fiscal ao impulsionar o endividamento do país.